Liberdade de imprensa ameaçada na América Latina

Numa ação raramente vista em regimes democráticos, cerca de 200 fiscais da Receita Federal argentina ocuparam, no dia 10 de setembro de 2009, a sede do Clarín, principal jornal do país. A operação foi interpretada como uma tentativa de intimidação contra opositores da presidente Cristina Kirchner. (Direto ao ponto: Ficha-resumo)

O incidente chamou a atenção da mídia internacional para os recentes ataques à liberdade de imprensa na América Latina. A relação entre governos e meios de comunicação nunca esteve tão tensa desde a queda das ditaduras militares na região, há mais de vinte anos.

Na
Argentina, imprensa e Poder Executivo trocam acusações desde que Néstor e Cristina Kirchner chegaram ao poder em 2003. O casal reage às críticas acusando a mídia de "golpista", evita entrevistas coletivas a jornalistas e direciona a publicidade oficial do governo para veículos de comunicação aliados, em detrimento dos demais.

A briga com o
Clarín, o mais poderoso conglomerado de comunicação do país, começou há um ano. O governo nega a tentativa de intimidação. A blitz teria como objetivo verificar denúncias de irregularidades fiscais e trabalhistas na empresa. Naquele mesmo dia, porém, o jornal havia publicado uma reportagem que acusava um órgão ligado à Receita de irregularidades.

Soma-se a isso o fato de a presidente tentar aprovar no Congresso argentino uma nova Lei dos Meios Audiovisuais que amplia os poderes do Estado sobre os meios de comunicação eletrônicos na Argentina, criando uma cota de 33% dos canais de TV para o setor privado. O restante seria dividido entre poder público, Organizações Não Governamentais (ONGs), sindicatos, universidades e igrejas.

Um dos pontos mais polêmicos do projeto permitia a entrada de empresas de telefonia no mercado de TV a cabo, que atualmente é liderado pelo Grupo Clarín. Cedendo às pressões da oposição, a presidente decidiu retirar o item. A manobra visa acelerar a aprovação antes de 10 de dezembro, quando assumem os novos parlamentares eleitos em junho e o governo perde a maioria no Congresso.

A Casa Rosada, sede do Executivo argentino, alega que a finalidade da nova lei é acabar com o monopólio dos veículos de comunicação. Nos bastidores, o casal Kirchner e o Grupo Clarín disputam o mercado bilionário das telecomunicações.

Chávez

A despeito dos interesses econômicos envolvidos, a liberdade de imprensa é uma peça essencial para o bom funcionamento das democracias. Somente uma imprensa independente, livre de interferências políticas ou econômicas, pode contribuir para fiscalizar os poderes. Por essa razão, regimes ditatoriais sempre controlam e censuram meios de comunicação, como ocorre em Cuba,Coréia do Norte, China e Irã.

Na América Latina, países como o
Brasil viveram décadas sob ditaduras militares, período em que a censura era institucionalizada. O processo de redemocratização, porém, não impediu que uma corrente ideológica de esquerda, liderada pelo presidente venezuelano Hugo Chávez, investisse contra a imprensa.

Em 2007, Chávez não renovou a concessão da emissora de TV Rádio Caracas Televisão (RCTV), uma das mais tradicionais da
Venezuela, pois a emissora fazia oposição ao governo e teria apoiado uma tentativa de golpe de Estado em abril de 2002. A decisão do presidente, que levou ao fim das transmissões abertas da rede de TV, foi criticada por organismos internacionais e parlamentos da região.

Mais recentemente, Chávez anunciou que fecharia outro canal de TV, a Globovisión, a quem acusa de promover "terrorismo midiático". O presidente venezuelano também pediu a abertura de processos administrativos contra 50 das 240 emissoras privadas de rádio do país.

Equador e Bolívia

Procedimentos semelhantes contra a imprensa foram recentemente empregados pelos aliados de Chávez: o presidente equatoriano Rafael Correa e o boliviano Evo Morales.

No
Equador, o presidente reeleito abriu nova frente de controle do conteúdo da imprensa com o projeto que instaura um conselho de fiscalização. De acordo com esse projeto, elaborado pela base aliada do governo, jornais, rádios e TVs fariam um registro obrigatório para obter licença provisória de funcionamento, válida por um ano.

Na
Bolívia, é cada vez maior a intervenção do Executivo nos veículos de comunicação e os investimentos em órgãos oficiais de imprensa. Morales também processou o jornal La Prensa, da capital, que publicou em dezembro do ano passado uma reportagem que ligava o presidente a um suposto caso de corrupção.

Há mais casos relatados de censura e coerção a órgãos de imprensa na América Central, em
Honduras e na Nicarágua, incluindo fechamento de empresas de comunicação e ameaças a jornalistas.

Brasil

No Brasil, ao contrário das demais nações da América Latina, partiram do Poder Judiciário os últimos ataques à liberdade de imprensa. O caso mais emblemático envolve o jornal O Estado de S. Paulo, que há quase 50 dias está sob censura prévia por determinação judicial.

No dia 31 de julho de 2009, o desembargador Dácio Vieira, do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT), proibiu o jornal e o site de publicarem matérias sobre a "Operação Boi Barrica", da Polícia Federal, atendendo a recurso da defesa do empresário Fernando Sarney, filho do presidente do Senado
José Sarney (PMDB-AP). A justificação pelo ato de censura prévia era de que o jornal havia divulgado informações sobre a investigação que envolve o empresário, protegidas por sigilo judicial.

Ainda que o ato seja depois revogado por instâncias superiores de Justiça, pois contraria a própria
Constituição brasileira, tem sido cada vez mais comum no Brasil a tentativa de silenciar jornalistas por meio do Poder Judiciário.

Outro caso recente de censura prévia envolveu o colunista José Simão, do jornal
Folha de S. Paulo, proibido, em julho de 2009, pela Justiça do Rio de Janeiro de associar o nome da atriz Juliana Paes à personagem que interpretava na novelaCaminho das Índias, da TV Globo. A decisão foi revogada no dia 11 de setembro do mesmo ano.

A mesma
Folha foi alvo de 107 processos movidos pela Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) contra reportagem publicada em 15 de dezembro de 2007, que descrevia o funcionamento empresarial da igreja.

Em 2009, o deputado Edmar Moreira (PR-MG), que ficou conhecido depois de colocar à venda um castelo no interior de Minas Gerais, moveu 44 processos contra alguns dos principais jornais, revistas e TVs do país, pedindo indenizações por danos morais. Tais processos têm efeitos ainda mais coercitivos contra empresas menores, como jornais de pequeno e médio porte, que não possuem condições financeiras para sustentar ações dispendiosas.

Seja pela aquisição de veículos de comunicação, atos administrativos, distribuição controlada de publicidade oficial, projetos de leis, processos na Justiça ou violência, a tentativa de calar os opositores e impedir o exercício crítico e investigatório da imprensa na América Latina corre o risco de manchar a histórica luta pela democratização do continente.

Direto ao ponto
A liberdade de imprensa é um dos alicerces das sociedades democráticas. Somente a imprensa independente de poderes econômicos e políticos pode exercer seu papel fiscalizador. Por essa razão é que as ditaduras mantêm os meios de comunicação sob censura.

Têm sido recorrentes os casos de violação do direito de expressão de órgãos de imprensa em países da América Latina:

Argentina: blitz de fiscais da receita à sede do Clarín, principal jornal do país, que faz oposição à presidente Cristina Kirchner.
Venezuela: em 2007, Hugo Chávez não renovou a concessão da emissora de TV Rádio Caracas Televisão (RCTV), que foi obrigada a encerrar as transmissões abertas. O presidente também ameaça fechar outra rede de TV e emissoras de rádio.
Equador: projeto de lei apoiado pelo presidente Rafael Correa obriga veículos de comunicação a fazerem um cadastro e obterem licença provisória de funcionamento, permitindo ao governo ter mais controle sobre o conteúdo.
Bolívia: presidente Evo Morales processou jornal e reestruturou imprensa oficial para rebater críticas.
Brasil: por determinação do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT), O Estado de S. Paulo está sob censura prévia. O jornal foi proibido de publicar matéria sobre investigação da PF que envolve Fernando Sarney, filho de José Sarney (PMDB-AP). Outro caso atingiu o colunista José Simão, do jornal Folha de S. Paulo.

Saiba mais

  • Cale a Boca, Jornalista! (Editora Novo Século): livro do jornalista Fernando Jorge que relata arbitrariedades cometidas contra a imprensa pelo Estado brasileiro, desde a época do império até o regime militar.
  • Mordaça no Estadão (Gráfica de O Estado de S. Paulo): livro-reportagem de José Maria Mayrink sobre a censura ao jornal após a edição do AI-5, que traz também a reprodução de páginas censuradas pela ditadura.
  • Veja Sob Censura: 1968-1976 (Editora Jaboticaba): obra de Maria Fernanda Lopes Almeida que reúne oito anos de censura sofridos por uma das mais importantes revistas do país.
  • Páginas da Revolução (1996): um dos últimos filmes estrelado pelo ator italiano Marcello Mastroianni, conta a história de um jornalista português durante a ascensão do nazifascismo na Europa.
*José Renato Salatiel é jornalista e professor universitário.
Fonte: UOL
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