Por um mundo pós-americano

Ao contrário das aparências, os Estados Unidos já não ditam suas ordens ao mundo. De fato, os últimos acontecimentos indicam o surgimento de um outro cenário internacional, um mundo no qual a hiperpotência americana já não conseguirá mais impor sua vontade. Esta é a posição, marcadamente polêmica, do cientista político e historiador econômico nova-iorquino Immanuel Wallerstein.


Da hegemonia à perda de poder

Ao contrário das opiniões correntes que afirmam haver uma só potência no mundo de hoje, os Estados Unidos, tidos como poder unipolar, Wallerstein afirma que essa situação de soberania onipotente dos norte-americanos sobre o mundo já passou. Na verdade, aquela hegemonia de fato somente se consagrou e foi realidade entre os anos que se seguiram a Segunda Guerra Mundial até o fim da Guerra do Vietnã (mais ou menos de 1945 a 1975), quando então sim era Washington quem ditava sua vontade ao planeta inteiro.


A origem dessa situação de superioridade absoluta vinha do Tratado de Yalta, de 1944. Naquela ocasião, os chamados Três Grandes (Franklin D.Roosevelt pelos EUA, Winston Churchill pela GB e Joseph Stalin pela URSS), reunidos no sul da Rússia, acertaram a partilha do mundo, dividindo-o em duas áreas de influência. Uma delas ficou sob o controle dos países capitalistas, liderados pelos norte-americanos, e a outra pelos soviéticos. Ocorre que aquela divisão não foi eqüitativa, cabendo aos Estados Unidos uma área bem maior, correspondente a 2/3 da terra inteira. Além disso, a moeda americana tornou-se referência de valor internacional, permitindo a que a população norte-americana, ainda que compondo apenas 6% dos habitantes da terra tivessem uma economia que correspondia em volume a 25% do mundo inteiro.


Em grande parte aquela situação foi excepcional devido os efeitos da Segunda Guerra Mundial. Quando os nazi-fascismo germano–italiano e o mikado japonês foram finalmente derrotados em 1945, a maioria dos países industrializados soçobrava em ruínas. Na Grã-Bretanha, na França, na Itália, na Alemanha, no Japão e na URSS, as fábricas encontravam-se arrasadas ou imensamente desgastadas pelo esforço de guerra, o sistema de transportes e comunicações estava desmantelado ou parcialmente paralisado, cidades inteiras haviam desaparecido vitimas de intensos bombardeios aéreos, milhares , se não milhões, de civis qualificados haviam sido mortos e a riqueza nacional existente antes de 1939 havia simplesmente evaporado. (*)


Nas grandes capitais o dinheiro fora substituído pelo mercado negro, onde imperava um retorno ao escambo em meio a um quadro dantesco de fome, desalento e decadência.
Apresentou-se então para os Estados Unidos uma situação inédita. Os seus produtores, seus agentes econômicos, praticamente ficaram sem concorrentes. Se bem que a URSS fosse uma potência militar e nuclear nada desprezível, ela não impunha nenhuma ameaça à hegemonia econômica americana sobre a maior parte do mundo.

(*) Apenas como um exemplo do quadro devastador da situação do pós-guerra, basta lembrar que a Alemanha, que antes da guerra era uma das maiores potências industriais do mundo, teve em 1946 seu setor pesado reduzido a 50¨% do que era em 1938, sendo que 1.500 das suas outrora grandes plantas industriais haviam sido totalmente desmanteladas.

O Plano Marshall e seus efeitos

I.Wallerstein
Para dinamizar ainda mais suas potencialidades, o governo do presidente Harry Truman (1945-1952) lançou em 3 de abril de 1948 o Plano Marshall, disponibilizando a partir daquela data às nações arruinadas a então significativa soma de U$ 13 bilhões para que elas pudessem adquirir manufaturas vindas da América, bem como recompor suas economias internas. As importações européias concentraram-se em matérias-primas, produtos semifaturados, alimentos, suprimentos, fertilizantes, máquinas, veículos e equipamentos, além de óleo cru.

Ainda que ofertassem recursos para a URSS, os soviéticos os rejeitaram bem como vedaram o mesmo aos países sob sua órbita de influência, como foi o caso da Tchecoslováquia e da Polônia, que passariam a ser apoiados pelo Plano Molotov.
O Plano Marshall foi um estrondoso sucesso, mas também marcou o começo do recuo dos Estados Unidos, pois os “milagres econômicos” que se seguiram aos anos de guerra, os “Trinta Anos Gloriosos”, no dizer dos franceses (1950-1980), permitiram aquelas nações, especialmente aos europeus e ao Japão, se recuperarem e dependerem um tanto menos dos norte-americanos.

A Subversão do Mundo Colonizado

Todavia esse cenário marcado pela rígida divisão do mundo em duas áreas de influência, com fronteiras ideológicas bem demarcadas e respeitadas tanto pelos americanos como pelos soviéticos começou a ser desafiado pelas rebeliões que principiaram a ocorrer no antigo império colonial europeu. Na Ásia, na África, no Oriente Médio, os povos até então submetidos à meia dúzia de metrópoles européias, deram para sacudir o jugo e lutaram para alcançar a independência. China, Índia, Argélia, Vietnã e Cuba, entre tantas outras, romperam com o controle externo exercido pelos governos estrangeiros. Alguns caminhos deles foram revolucionários outros não, mas no final meia centena de países politicamente autônoma brotou das ruínas dos antigos impérios coloniais europeus. Muito deles associaram-se então como Países Não-alinhados manifestando desejar distanciar-se do conflito americano-soviético. Reunidas em Bandung, na Indonésia, 29 dessas ex-colonias, lideradas pela Índia, Egito, China e Iugoslávia, procuraram naquela época estabelecer uma estratégia em comum que as libertasse das amarras impostas pela Guerra Fria.


A ordem política originada de Yalta então foi abalada. Para os Estados Unidos o sinal do seu declínio chegou com a derrota na Guerra do Vietnã (1965-1975), que implicou entre outras coisas no abandono do gold standard, do padrão ouro acertado primeiramente na Conferencia de Bretton Woods, de julho de 1944 (que dava garantias extraordinárias ao dólar norte-americano, fixando cada onça de ouro em U$ 34), e que foi publicamente anunciado pelo governo do presidente Richard Nixon em agosto de 1971.


Até aquela ocasião qualquer país que tivesse dólares em seus cofres contava com a garantida dada pelo Tesouro dos Estados Unidos que poderia trocá-los por ouro assim que necessitassem. A negativa norte-americana a tal obrigação jogou boa parte do mundo numa onda inflacionária que se acirrou ainda mais com a crise do petróleo desencadeada pela OPEP (Organização dos Países Exportadores de Petróleo) em 1973.


Deste modo, em resumo, a formação dos Países Não-alinhados a partir de 1955, a recuperação econômica dos seus aliados atingidos pela guerra alcançada nos anos 60, e o abandono do lastro ouro para com o dólar, em 1971, decorrente do fiasco militar no sudeste asiático, acabaram por encurtar o espaço da influência que os Estados Unidos exercia sobre todos os demais.

Em busca da Liderança Forte

Por conseguinte, a política das últimas administrações norte-americanas, especialmente a executada pelo Presidente Bush, visa não somente atenuar a perda crescente da hegemonia, que há bem pouco tempo era exercida sobre a maior parte do planeta, como recuperar integralmente a posição perdida. E porque ocorrera tal declínio? Segundo os principais assessores da Casa Branca, o grupo de intelectuais chamados de neocons (neoconservadores), isso se deveu à falta de pulso dos presidentes anteriores, extremamente condescendentes com os desafios que foram feitos à autoridade deles. Agem assim com intento restauracionista.


O que os Estados Unidos precisam acima de tudo, assim dizem, é uma Liderança Forte o suficiente para recuperar sua posição hegemônica. Um comando decidido, enérgico, que não mostre hesitação na consecução dos seus objetivos estratégicos, que o obrigaram anteriormente a transformar nações até então dependentes deles em aliados, como foi o caso da Europa Ocidental e dos Tigres Asiáticos. Muito menos aceitar os Tratados Internacionais, como o Protocolo de Kyoto, de 1997, visando a luta contra a poluição, a preservação do clima e de outras condições ambientais que, segundo o presidente, tentem inibir o bom desempenho da economia dos Estrados Unidos prejudicando de algum modo o american way of life.


Para o presidente Bush os Estados Unidos são imbatíveis, uma hiper-potência que não deve favores a ninguém nem deve pedir licença às instituições internacionais como a ONU ao agir em função da sua segurança e dos seus cidadãos.


Entre outras medidas, além de chefiar o G-7 (o Grupo dos Sete, criado pela França, em 1976, composto pelos países mais ricos do mundo: EUA, Canadá, Japão, Alemanha,França, Grã-Bretanha e Itália) capitaneiam uma aberta campanha para não perderem o seu quase monopólio sobre as armas nucleares até agora existentes (o que explica a pressão exercida sobre a Coréia do Norte e sobre o Irã).


Como complemento dessa política restauracionista, como que retomando a animosidade da época da Guerra Fria, crescentemente se indispõem contra a Federação Russa, plantando nas proximidades da fronteira dela, na Polônia, na República Tcheca, e até na distante Geórgia, mísseis ou radares que o governo do Kremlin, com todos os motivos,considera agressivo ao seu país.

Resultados da Guerra do Iraque

Além de estar praticamente num atoleiro, com seu prestígio político e militar desgastado pela situação do Iraque, invadido em 2003, o atual governo republicano deixou os Estados Unidos exposto ao fato de que não só não pode vencer a guerra como não tem quadros militares suficientes, oficiais e praças, para fazer alguma outra intervenção armada se for necessário. Um dos motivos disso é o fato de ter sido abolida a conscrição militar obrigatória em 1973, o que limita o contingente de tropas à disposição do governo.

Ainda que o país possa contar com quase 55 milhões de homens aptos a pegarem em armas (dos 18 aos 49 anos de idade), atualmente as Forças Armadas norte-americanas dispõem somente de 1,4 milhões de soldados, recrutados pelo processo voluntário (de certo modo as forças norte-americanos cumprem um destino igual ao das legiões romanas, que por igual começaram com soldados cidadãos e terminaram compostas por profissionais ou por mercenários). Tudo isso desmente a doutrina da unipolaridade adotada pela administração Bush e abre caminho efetivo para uma efetiva multipolaridade, situação que ela teima em não aceitar nem reconhecer.

Fases do poder Norte-Americano

A águia americana na enfraqueceu na guerra do Iraque
Período: entre 1945- 1975

Situação de Poder:Hegemonia absoluta dos EUA. Controle sobre 2/3 do planeta.

Descrição: Plano Marshall, apogeu do Banco Mundial e do FMI


Período: entre 1975 - 2002

Situação de Poder: Declínio do poder norte-americano após guerra do Vietnã. Época da multipolaridade.

Descrição: Recuperação econômica da Europa (formação da União Européia) e do Japão. Novos países emergentes (BRIC) e Tigres Asiáticos

Período: pós-2002

Situação de Poder: Movimento Restauracionista do governo Bush visando a retomada da unipolaridade.

Descrição: Política da Guerra Preventiva: invasão do Afeganistão e do Iraque. Tensão maior com Irã e indisposição com a Rússia.


Chiapas e Seattle


Para Wallerstein, o cenário otimista que a globalização contava até então foi abalado por dois acontecimentos muito significativos, senão que dramáticos. O primeiro deles partiu dos fundões do México, no estado de Chipas, onde eclodiu o levante dos Zapatistas chefiado pelo subcomandante Marcos. Os índios daquela região muito pobre se rebelaram exatamente no ano que entrou em vigor o NAFTA (Tratado Norte-Americano do Livre Comércio), acerto que estreitava ainda mais as relações econômicas do México com os Estados Unidos e o Canadá, entendido pelas lideranças nativas como um passo funesto rumo à globalização.


O segundo acontecimento estourou numa cidade norte-americana, em Seattle, capital do estado de Washington, situada na baia de Eliot, na costa noroeste dos Estados Unidos, quando organizações anarquistas e representantes sindicais da AFLO-CIO, desencadearam uma violenta manifestação de rua contra a realização do encontro da WTO (World Trade Organization), a Organização Mundial do Comércio, a N30, que seria iniciada em 30 de novembro de 1999, naquela cidade mesmo.


Esses dois episódios inesperados e retumbantes, um em Chiapas e outro em Seattle, ainda que bem distanciados entre si, assinalam para Wallerstein a forte reação popular antiglobalização e uma afirmação por uma maior participação democrática nas discussões internacionais que tratam da integração econômica – limitada quase sempre aos técnicos e aos políticos - que se seguem desde então.

Davos versus Porto Alegre

Outro enfrentamento internacional destacado por ele, ainda que circunscrito ao mundo das idéias, foi a rivalidade resultante entre as propostas expostas em Davos na Suíça e aquela que procederam do Forum Social Mundial, ocorrido em Porto Alegre, a primeira vez em 25-30 de janeiro de 2001.


No vilarejo do cantão dos Grisões encontram-se anualmente as mais poderosas organizações da terra reunidos no WEF
(World Economic Fórum), no Foro Econômico Mundial, fundado pelo economista teuto-suíço Klaus Schwab, em 1971, com o intento de aperfeiçoar o sistema capitalista, e que conta, além da presença de empresários, executivos e estadistas de renome, com a participação de Organizações Não-Governamentais, tais como a Anistia Internacional,a Transparência Internacional ou a Oxfam, que luta contra a fome.


Apesar de proporcionar um clima franco, aberto e informal, a reunião de Davos tem sido criticada por seu caráter eminentemente elitista, como que recriando uma espécie de Monte Olímpico no qual os deuses do nosso tempo reúnem-se para decidir os destinos do mundo.
Já o Forum Social Mundial teve outras procedências. Devido a prefeitura de Porto Alegre estar na ocasião nas mãos do Partido dos Trabalhadores (o PT), uma organização política da esquerda brasileira, criou-se a oportunidade para que a capital do Rio Grande do Sul abrigasse nos dias quentes de janeiro uma enorme concentração de militantes políticos, intelectuais e ativistas sociais vindos de diversas partes do Brasil e do exterior (editores do jornal francês
Le Monde encontravam-se entre seus principais organizadores) para debater as possibilidades futuras de um Outro Mundo Possível (posteriormente, o Forum Social Mundial transferiu-se para outros locais do mundo). Para Wallerstein, essa assembléia das esquerdas concretizou no plano ideológico as duas manifestações mais contundentes da antiglobalização que ocorreram em Chiapas e Seattle, entre 1994 e 1999, tornado-se sua conseqüência lógica.


Cristalizou-se uma polarização entre Davos e Porto Alegre, entre o Fórum Econômico Mundial e o Forum Social Mundial, um representando a defesa do neoliberalismo (não excluindo a preocupação com a reforma do capitalismo), e o outro, segundo sua Carta de Princípios, apostando na retomada de um socialismo não-dogmático e democrático, comprometido com as reivindicações dos excluídos, totalmente oposto ao que fora praticado na URSS. Iniciou-se um diálogo entre dois mundos, entre duas propostas, sem que saiba qual delas irá prevalecer no futuro.DOWNJÁ
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