País com características únicas no Oriente Médio, o Irã foi alvo de interferência internacional desde as primeiras décadas do século 20. O movimento que levou ao poder o regime islâmico de inspiração xiita quem comanda o país desde 1979 fortaleceu-se na resistência nascida nas mesquitas à ditadura do xá Mohammad Reza Pahlevi. Com apoio americano, o xá tentou implantar no país um modelo de modernização ocidental, em um governo marcado pela corrupção e a repressão aos adversários.
A eleição presidencial iraniana mobilizou um número recorde de eleitores, e a controversa reeleição de Mahmoud Ahmadinejad em primeiro turno levou milhares de manifestantes às ruas, mas o cargo de presidente é apenas uma - e nem mesmo a principal - das peças que compõem a estrutura do Estado.
Instalado após a Revolução Islâmica que derrubou o xá Mohamad Reza Pahlevi em 1979, o sistema tem em seu topo o líder supremo, que comanda as Forças Armadas e espalha sua influência por meio da indicação de ocupantes de postos-chave.
Há 30 anos não se via no Irã nada parecido com o que ocorreu na semana passada. O levante avassalador que surpreendeu o mundo em 1979 e resultou na Revolução Islâmica, liderada pelo aiatolá Ruhollah Khomeini, é o único evento comparável às cenas vistas nas últimas semanas. Marchas de protestos, com participação de milhões de iranianos, tomaram conta do país após o anúncio da vitória do presidente Mahmoud Ahmadinejad na eleição presidencial do dia 12. Estimulada por denúncias de uma fraude maciça na reeleição de Ahmadinejad, a rebelião ocorreu nas ruas, mas também com uma intensidade surpreendente na internet, por meio de redes sociais como o Facebook e o Twitter e sites como o YouTube. Os protestos dão uma dimensão das fissuras políticas na sociedade iraniana e apontam possíveis mudanças na república clerical xiita, um dos regimes mais fechados e opressores do mundo.
As consequências da crise iraniana, porém, podem atravessar as fronteiras do país. Em certa medida, a própria paz no planeta depende de seu desfecho. O Irã possui a segunda maior reserva de petróleo do mundo, atrás apenas da Arábia Saudita. Com um território enorme para os padrões do Oriente Médio e uma população de 71 milhões de habitantes, o país é também o maior reduto de muçulmanos xiitas do mundo, numa região onde a estabilidade depende do equilíbrio de forças entre os dois principais ramos do islã: xiitas e sunitas. Seu governo financia grupos extremistas, como o Hezbollah, no Líbano, e o Hamas, na Faixa de Gaza – e está num estágio avançado do programa nuclear que pode lhe dar uma bomba atômica. O presidente Mahmoud Ahmadinejad professa um islamismo ultraconservador. Já negou o Holocausto na tribuna das Nações Unidas e, por diversas vezes, demonstrou hostilidade ao Estado de Israel.
A onda de protestos no Irã começou imediatamente após a divulgação do triunfo de Ahmadinejad pela agência iraniana de notícias, apenas duas horas após o fechamento das urnas. A proclamação oficial do resultado da eleição deu 63% dos votos para Ahmadinejad, contra 33% para seu principal adversário, o ex-primeiro-ministro Mir Hossein Mousavi, um oposicionista considerado pouco carismático, mas que, ao longo da campanha, ganhou o apoio entusiasmado de reformistas, jovens e mulheres de classe média dos grandes centros urbanos. O resultado espantou, entre outros motivos, por causa da velocidade da apuração, já que a participação de quase 40 milhões de eleitores em todo o território iraniano é feita por meio de cédulas preenchidas à mão. O tempo gasto para a apuração nas disputas anteriores era de dois a três dias. Além disso, a larga vantagem obtida por Ahmadinejad contrariou as expectativas de uma diferença pequena de votos, alimentadas por uma campanha muito acirrada. Na contagem oficial, Ahmadinejad venceu com folga inclusive nas áreas em que a etnia azeri, a mesma de Mousavi, é predominante.
A apuração rápida e a vantagem larga de Ahmadinejad levantaram as suspeitas de fraude
Mousavi acusou o governo de cometer “irregularidades em massa” e pediu nova eleição. Foi a senha para o país entrar em convulsão. Multidões nas ruas gritavam “morte ao ditador”, em repúdio a Ahmadinejad, palavra de ordem que em pouco tempo evoluiu para “morte ao aiatolá”, em referência ao líder supremo do país, o aiatolá Ali Khamenei, que ratificara rapidamente a vitória do atual presidente como uma “bênção divina”. No sistema político iraniano, o líder supremo é o comandante em chefe das Forças Armadas e controla o Judiciário, a mídia e o Conselho de Guardiães, um órgão de notáveis com poderes de vetar candidatos e supervisionar as eleições. O presidente cuida das questões administrativas e tem poderes sobre os programas de gastos e investimentos do Estado.
Aos protestos, seguiu-se a reação. As marchas com centenas de milhares de pessoas, durante toda a semana, foram seguidas de forte repressão promovida pela polícia ou por integrantes de uma milícia islâmica, a Basij, uma numerosa força paramilitar formada por voluntários à paisana. Em uma semana, centenas de políticos oposicionistas e manifestantes foram presos, jornais foram censurados, comícios foram proibidos e universidades foram fechadas. O cerco à informação começou com o bloqueio de sites e terminou com a não renovação da autorização de permanência dos jornalistas estrangeiros, o que praticamente fechou o país aos observadores.
ENTENDA O IRÃ
Conheça o quebra-cabeças de etnias, religiões, fontes de energia e controvérsias deste país
GEOGRAFIA |
PERSONALIDADES |
DADOS COMPLEMENTARES |
CRISE NO IRÃ VAI ALÉM DO RESULTADO DAS ELEIÇÕES
A crise após as eleições presidenciais no Irã se desenvolveu em uma velocidade tão vertiginosa que ainda é difícil entender as suas possíveis implicações.
Oficialmente, Ahmadinejad foi reeleito
nas últimas eleições
Até cerca de duas semanas atrás, o presidente Mahmoud Ahmadinejad podia alegar que o Irã era um país "quase completamente livre". Já havia céticos então. Agora, a imprensa estrangeira no país está sendo obrigada a trabalhar sob algumas das mais duras restrições do mundo. Cabe perguntar onde esta crise pode chegar e o que quer a oposição.
Até o momento, os manifestantes iranianos exigem apenas uma coisa: a convocação de novas eleições, já que eles acreditam que o opositor Mir Houssein Mousavi teria vencido o pleito da semana passada, enquanto os resultados oficiais apontam para uma vitória de Ahmadinejad.
Quando os manifestantes gritam nas ruas "morte ao ditador", não dizem a quem exatamente estão se referindo. Eles podem não apenas estar se dirigindo ao presidente Ahmadinejad, mas também ao líder supremo do país, o aiatolá Ali Khamenei. Mesmo assim, isto não é um desafio aberto ao sistema islâmico que governa o país desde a Revolução de 1979, pelo menos até agora.
As mulheres que participam dos protestos, por exemplo, ainda não estão tirando os véus que cobrem suas cabeças, embora muitas não gostem de ser obrigadas a usá-los. Os manifestantes também costumam gritar "Deus é grande", querendo ressaltar que eles são tão religiosos quanto aqueles que apoiam o governo.
Dignidade e prisões
O governo reage aos protestos com uma exibição de dignidade ferida, como se a ideia de que ele pudesse ter fraudado as eleições fosse impensável, embora a oposição veja a fraude como bastante evidente.
Embaixadores estrangeiros são convocados um a um e censurados até mesmo por ousarem criticar a morte de manifestantes. Enquanto isso, as autoridades enviam seus "brutamontes", os Basijis - membros da milícia pró-governo - para intimidar os oposicionistas.
Dormitórios estudantis são revirados, manifestantes são detidos durante os protestos. Blocos de apartamentos de onde os iranianos gritam palavras de ordem são invadidos e carros destruídos. A onda de prisões chegou a um ponto em que até um dos mais próximos assessores do aiatolá Khomeini, Ebrahim Yazdi, foi detido. Até agora, nenhuma decisão foi tomada pelo governo para realmente controlar a crise, mas isto deve acontecer cedo ou tarde.
Luta de gigantes
Enquanto isso, uma disputa de poder está acontecendo no topo do sistema iraniano.
Khamenei apoiou a vitória de
Mahmoud Ahmadinejad no pleito
O aiatolá Ali Khamenei apostou sua carreira política no apoio inequívoco à vitória do presidente Mahmoud Ahmadinejad nas eleições. Khamenei tem muitas cartas nas mãos. Ele é o comandante supremo das Forças Armadas, além de ser apoiado fielmente pelo Conselho dos Guardiões, que está revisando os resultados do pleito. Até agora, ninguém ousou questionar sua autoridade, pelo menos não abertamente.
Mas, do outro lado, está o ex-presidente Akbar Hashemi Rafsanjani, que tem apoiado as campanhas oposicionistas. Desde o início da campanha, ficou claro que ele desejava se vingar de Ahmadinejad, que o venceu nas eleições presidenciais de 2005. Além disso, há provavelmente uma rivalidade mais profunda com o líder supremo do país. Rafsanjani apoiou Khamenei quando ele sucedeu Khomeini, em 1989. Esta rivalidade veio à tona quando, durante um debate televisionado, Ahmadinejad acusou a família de Rafsanjani de corrupção.
Muitos iranianos acreditam que as acusações podem ser verdadeiras, mas maneira como foram feitas por Ahmadinejad causaram escândalo. A acusação fez com que Rafsanjani escrevesse uma carta sem precedentes para o líder supremo, pedindo que ele agisse a respeito e fazendo ameaças.
Rafsanjani escreveu que, se nada fosse feito, "os vulcões que queimam dentro de peitos flamejantes aparecerão na sociedade, como vemos nas reuniões a que assistimos nas ruas, praças e universidades". Estas "chamas", disse Rafsanjani na carta, podem se "espalhar pelas eleições e além delas".
Rafsanjani tem divergências com
Ahmadinejad e Khamenei
Akbar Hashemi Rafsanjani também tem armas poderosas. Ele é o líder da Assembleia dos Especialistas, o grupo de clérigos responsável por eleger, supervisionar e até substituir o líder supremo do país. Uma ação do grupo contra Khamenei seria inédita. Mas Rafsanjani recentemente foi reeleito para o cargo com uma grande maioria.
Além disso, Khamenei também tem muitos inimigos entre os clérigos. Rafsanjani também lidera o Conselho de Discernimento, que é responsável por mediar as disputas entre os órgãos do governo. Além disso, a conhecida riqueza de Rafsanjani não pode ser subestimada.
Futuro
Pode ser que existam partidários do governo que estejam ficando encorajados pelas manifestações, mas há também muitos que têm uma adoração genuína por Ahmadinejad. Entre os oposicionistas, a crise após as eleições fez com que anos de frustração contra o sistema viessem à tona.
Os dois lados podem estar discutindo agora a questão das eleições. Mas a verdadeira discussão é sobre o futuro do Irã. Esta é uma batalha importante, gigantesca, cujo resultado ninguém pode prever.
Fontes: Revista Veja | Jornal O Estado de S. Paulo | Jornal Folha de S. Paulo | Revista Época | BBC Brasil
0 Response to "Entenda a crise na política iraniana"
Postar um comentário