Não fomos feitos para voar. Mesmo assim, depois de milênios em que tentamos sem sucesso imitar os pássaros, no século passado conquistamos os céus graças a nosso engenho. Voar se tornou um fato corriqueiro e necessário na vida de um planeta cada vez mais integrado. Mas ainda há um quê de mistério e maravilha a cada voo que sobe ou desce. Um avião é algo improvável. E ninguém percebe isso com tanta clareza quanto aqueles que os pilotam. “O voo é totalmente inatural, aliás, para nós é a coisa mais inatural que existe, e o medo com relação a isso é saudável e coerente”, escreveu o italiano Daniele Del Giudice no livro Quando a sombra descola do chão, um relato de seu aprendizado como piloto. “Inatural e artificial, o voo era uma dimensão extrema da probabilidade, tão estreita quanto a pequena margem de inclinação lateral ou vertical em que um avião ainda é um avião em voo.” O mistério que cerca essa improbabilidade do voo se desfaz, porém, a cada avião que deixa de ser um avião – e despenca feito um bólido.
Foi o que aconteceu na madrugada da última segunda-feira com o voo 447, da Air France, do Rio a Paris. Ele caiu no oceano, no caminho entre o Brasil e a África, além de Fernando de Noronha. Até o fechamento desta edição, prosseguiam as buscas pelos destroços e pelos restos mortais dos 216 passageiros e 12 tripulantes. Com o auxílio de equipamentos como o minissubmarino francês Nautile (leia mais), o principal alvo das buscas eram as caixas-pretas do Airbus A330-200, capazes de reproduzir os últimos minutos a bordo do voo 447.
Por enquanto, a única certeza sobre a tragédia é contada pela história de quem estava a bordo e pelos informes automáticos que o avião transmitiu à companhia aérea (leia a reportagem). Depois de entrar numa área de turbulência descomunal, sujeita a condições meteorológicas extremas, a aeronave enviou sinais correspondentes a uma pane elétrica e à perda de pressão interna, antes de sumir dos sistemas de monitoramento. “Essa sequência é semelhante à de um paciente que está morrendo”, diz o especialista em segurança de voo Jorge Barros.
Ninguém pode, antes de uma investigação responsável, ter certeza do que aconteceu – e, mesmo depois, talvez isso jamais seja possível. Na falta de algo tangível, há quatro frentes de investigação:
1) qual foi o papel da extraordinária tempestade? O avião foi atingido por raios ou por uma chuva de granizo capaz de despedaçá-lo (leia mais)?
2) além da tempestade, teria havido falha nos equipamentos eletrônicos do moderno jato A330? Teria acontecido algo similar à pane eletrônica que, no ano passado, quase fez cair um voo da companhia australiana Qantas (leia sobre a eletrônica do Airbus)?
3) teria o piloto errado ao entrar com o avião numa nuvem da qual seria incapaz de sair (leia mais)?
4) houve falha de comunicação? Estaria o piloto mal informado sobre as condições do tempo (leia mais)?
As respostas a essas questões provavelmente ocuparão o noticiário pelos próximos meses.
A rota em que o avião caiu – entre Brasil e Senegal – ficou consagrada pelos relatos do escritor e aviador francês Antoine de Saint-Exupéry, que fazia o trajeto quando trabalhava no correio. No tempo dele, o voo era uma atividade artesanal e solitária. Voar era mais romântico – mas também mais perigoso. Com os avanços da tecnologia e da eletrônica, conseguimos tornar as viagens mais baratas e reduzir os riscos de voar. O avião se popularizou. Mas cada avanço costuma cobrar seu preço. Há novos riscos para quem entra numa aeronave – do terrorismo às aves migratórias cujas rotas foram alteradas pelo aquecimento global (leia mais). Nada disso significa que há motivo para ter medo de voar. Mas ainda assim temos. “É um medo totalmente irracional”, diz o psicólogo austríaco Robert Wolfger, especialista em fobias (leia sua entrevista).
A única forma de lidar com esse medo é aceitar a natureza improvável do voo. “Entre estar e não estar mais em voo há uma zona franca de segundos, de milhas, de altitudes, aquela é nossa zona. Nós trabalhamos ali, aquele é nosso lugar”, escreve Dal Giudice. Ele descreve os dois momentos mágicos de todo voo: aquele em que, como diz o título de seu livro, nossa sombra descola do chão – e aquele em que voltamos a nos reunir a ela. Os passageiros do voo 447 esperavam reencontrar a própria sombra em Paris.
Não há sombra no fundo do oceano.
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